Você quer brincar comigo?
O que a criança que você era ainda pode te ensinar sobre viver, sentir e pedir ajuda.
Photo by Pixabay.
Toda vez que me sinto desconectada da minha própria essência e do que realmente valorizo na vida, tento me lembrar da criança que eu já fui um dia, a menina que não tinha medo ou vergonha de ser quem quisesse ser, que se levantava do chão após todas as quedas, que se divertia enquanto aprendia alguma coisa nova, que apostava nas suas próprias ideias, que fazia questão de viver os seus próprios sonhos, que não se importava muito com o que os outros fossem pensar ou falar a respeito, que enxergava o mundo com encantamento e curiosidade, que gostava de brincar, simplesmente brincar, criando e vivendo personagens numa realidade repleta de possibilidades.
Quem ela era? Com o que ela se encantava? Do que mais gostava de brincar? E com o que se feria?
A menina que eu já fui um dia também chorava, sofria e tinha os seus próprios fantasmas para lidar, mas quando o calo apertava e ela já não sabia mais o que fazer, ela pedia ajuda. Aquela criança não tinha vergonha de pedir ajuda. E de apresentar-se vulnerável para o mundo também. Chorar não era motivo de vergonha. Não saber não era motivo de vergonha. Sentir medo não era motivo de vergonha. Sentir dor não era motivo de vergonha. Mas aí eu cresci.
Deixar de ser criança incumbiu em mim a crença de que independência e responsabilidade pressupunham a ausência de todo e qualquer tipo de ajuda de alguém, como se para crescer de verdade existisse uma cláusula oculta de que era proibido errar ou pedir ajuda. De que era proibido apresentar-se vulnerável para o mundo. De que chorar era sinônimo de fraqueza, de que reconhecer que não sabia ou que não conseguia era sinônimo de incompetência, de que qualquer manifestação sincera e transparente de medos e dores era sinônimo de desequilíbrio emocional.
Ainda posso me lembrar da frase que ouvi de uma das primeiras pessoas com quem trabalhei na vida. Eu estava com 20 anos e tinha acabado de trancar a faculdade de Jornalismo pela primeira vez (foram 4 vezes, ao todo, até me formar). Foi tudo tão de repente que nem tive tempo de raciocinar: cometi um erro, ela não admitia erros. Eu disse que sentia muito. Que não ia errar novamente. E então veio a sentença: “O seu maior erro é que você sente demais”. Aos 20 anos, no meu primeiro emprego remunerado, eu não queria chorar na frente dela, porque sempre me disseram que demonstrar emoções no ambiente de trabalho era uma postura nada profissional. E que chorar era coisa de criança. Ou de gente desiquilibrada. Não importava o tamanho da humilhação ou o quanto aquela pessoa te magoou, você simplesmente tinha que engolir o choro, o sapo, a dor, e seguir como se nada tivesse acontecido. Porque o maior erro era sentir. Não sinta, pareciam dizer em coro. Não erre, ecoavam também.
Naquele dia, eu me lembro de ter vomitado no banheiro.
Ainda somos aquela criança
Diante das cruezas do mundo, das responsabilidades, dos compromissos, das preocupações, dos rótulos e de tudo o que nos indica que a vida de adulto é assim mesmo, reconhecer que ainda somos, no fundo, como aquela criança de outrora, cheia de luzes e sombras, tornou-se uma tarefa às vezes doída e difícil demais, um exercício corajoso de vulnerabilidade e autoaceitação, porque também pressupõe humildade para enxergar-se como um ser em evolução, ignorante em vários aspectos da vida, muito sábio em outros, mas sempre no caminho, sempre em trajetória, nunca pronto, nunca completo.
Ainda somos aquela criança, mas, ao longo do tempo, fomos nos cobrindo com uma porção de crenças e valores que às vezes nem são nossos, vestindo máscaras de acordo com as circunstâncias, interpretando personagens em nome de agradarmos e sermos aceitos, dançando conforme a música, dizendo sim quando tínhamos vontade de dizer não ou vice-versa, porque, de repente, a forma como as outras pessoas nos enxergam ou o que pensam sobre nós tornou-se algo importante demais para não ser considerado.
E se o que pensam de mim tem um peso enorme na minha vida, como posso eu demonstrar qualquer tipo de fraqueza, insegurança, tristeza, dor ou receio, principalmente diante de tanta gente aparentemente forte e segura, que nunca se deixa dominar pelo medo, que sempre tem dicas infalíveis para todo e qualquer problema que você tenha na vida?
Por que sempre tenho que me sentir culpado quando o que sinto não está de acordo com o que dizem que eu deveria sentir?
Você não é obrigado a estar bem o tempo todo
Até o mais otimista dos homens e o mais influente dos gurus tem lá os seus medos e sombras para lidar. Somos seres humanos, o que significa que, não importa em que estágio da vida estamos, todos nós ainda temos o que ensinar e o que aprender uns com os outros. Todos nós nos sentimos tristes e inseguros de vez em quando. E todos nós temos, sim, uma necessidade inerente de aceitação e pertencimento, porque só se reconhece a própria existência quando se reconhece a existência do outro também.
Somos como espelhos.
Num mundo em que somos julgados por absolutamente tudo o que fazemos, mesmo que de forma inconsciente, o sentir-se mal por qualquer coisa que seja tornou-se quase que um pecado mortal, como se a revolta, a raiva, a angústia, a pressão e tudo mais que às vezes a gente sente fossem emoções indignas de pessoas adultas, evoluídas, gratas e de bem com a vida.
E então vem a culpa. “Você não pode se sentir assim”; “Sentir isso é errado”; “Você não é tão boa quanto achava que era”. E por aí vai.
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